Estamos vivendo tempos perigosos. Vivemos a era do politicamente correto para defender o que, muitas vezes, é errado.
Os recentes episódios em que assistimos à ação de manifestantes e ativistas, com comportamentos que vão desde a manifestação pacífica até a depredação arbitrária de bens públicos e privados, são a concretização de uma transformação social que, historicamente, não costuma terminar bem para as três partes envolvidas: os “rebeldes”, a “ordem pública” e a sociedade.
No início desse processo de transformação, as reinvindicações do lado rebelde costumam ser bastante legítimas e a ordem pública reage passivamente, sendo às vezes até conivente com os poucos excessos. Mas, tangidos por um movimento de massa, esse grupo de insatisfeitos pouco a pouco é contaminado por extremistas que promovem situações em que os agentes da ordem devem agir para preservar a ordenação social. A partir daí, a polaridade entre a ordem pública e os rebeldes tende a se acentuar com o tempo, transpondo as barreiras da razoabilidade e, geralmente, culminando em situações sociais em que os principais prejudicados são aqueles que assistiram passivamente essa escalada de embates: a sociedade.
Situações como essa são facilmente reconhecíveis em eventos como aqueles que precederam o golpe militar de 64, ou em confrontos que culminaram em guerras civis pelo mundo afora. Na ficção, os rebeldes tendem a ser tratados como heróis (vide a franquia Guerra nas Estrelas, por exemplo), mas na vida real, as duas forças estão dotadas de boas e más razões e, também, de bons e maus indivíduos que distorcem esse campo de razoabilidade.
Nos últimos meses, a sociedade manifestou amplamente, utilizando-se principalmente das facilidades da nossa tecnologia contemporânea, sua felicidade com o fato do Gigante ter acordado. Mas agora muitos não estão tão convictos dos reais benefícios desse fato. O Gigante acordou, mas com ele acordaram alguns fantasmas da nossa história recente. Até um certo ponto a sociedade esteve tendenciosa a colocar todos os ativistas e manifestantes no pedestal dos heróis enquanto os agentes da ordem pública eram considerados a personificação da maldade e da repressão. Mas diante dos seguidos episódios de vandalismo e depredação generalizada, ficou um pouco mais claro o papel dos mantenedores da ordem pública.
O fato do Gigante ter acordado decorre de uma recém adquirida “consciência” coletiva, impulsionada pelas facilidades de propagação de idéias (certas ou não) graças às novas tecnologias disponíveis. No entanto, essa consciência pode ser perigosa se não for acompanhada de muita sensatez. O discernimento entre o certo e do errado é subjetivo e condicionado aos valores que sustentam essa iluminação coletiva. Historicamente esse valores sempre foram ditados por um pequeno grupo formador de opinião. Nos dias de hoje, as vozes são muitas e movidas por razões bastante diversificadas.
Ao longo da história humana, essa consciência coletiva teve motivadores de ordem moral, religiosa, ética e cultural. Um exemplo ímpar dos efeitos dessa consciência coletiva foi a repressão instituída pela Igreja durante a Idade Média. Foram cerca de 1.000 anos em que a humanidade mergulhou na névoa do conhecimento e das boas relações sociais, levada por um extremismo religioso que retardou o desenvolvimento da ciência, do conhecimento e, principalmente, da boa qualidade de vida das pessoas. Outro bom exemplo foram os cerca de 20 anos de ditadura militar que vivemos no Brasil, quando militares e revolucionários se opuseram em um período de grandes privações sociais. Portanto, o final dessa história tende a ser prejudicial para todos. É como o caso em que duas crianças estão brigando e chega um terceiro para separar a briga: depois de todos os três saírem feridos da confusão, muitas vezes nem sequer eles se lembram porque a briga começou ou, se lembram, chegam à conclusão que os motivos não eram suficientes para levar a contenda àquele ponto. No final das contas, a culpa foi simplesmente da falta de sensatez.
Portanto, podemos até compreender os motivos humanitários que levaram, por exemplo, à invasão do Instituto Royal. O que a sociedade não pode aceitar, por não ser sensato, é a forma anárquica, radical e insensata como tudo aconteceu. A consciência coletiva em relação à exploração e ao abuso de animais é extremamente louvável, mas a falta de sensatez para discernir o que é o certo a fazer é o que promove, por exemplo, a escalada de vandalismo social que agora está se apregoando: pesquisas científicas, aulas de medicina e veterinária poderão não mais acontecerem por causa do “politicamente correto”. Mas será que esse radicalismo é o certo? Seguindo esse cortejo, em breve a Fiocruz e o Instituto Butantã estariam entre as próximas vítimas? Nosso país, considerado exemplar no combate à Aids, pela promoção à pesquisa científica nacional para os remédios cujas patentes foram quebradas, provavelmente não teria essa reputação se essa “consciência coletiva” tivesse agido antes. Mais que isso, milhares de pessoas não estariam hoje se beneficiando dos coquetéis de remédios que lhes garantem, se não a saúde plena, pelo menos uma melhor qualidade e expectativa de vida.
E o que nos garante que, nas próximas semanas ou meses, hordas de ativistas não invadirão zoológicos e centros de criação animal para promoverem a liberdade dos animais criados em cativeiro (sei que esta ideia está aqui generalizada e simplificada, mas é realmente esse o risco: a generalização e simplificação insensata das ideias, com seus motivos, causas e consequências). Ou que, em algum momento, uma facção de pretensos protetores dos direitos da criança e do adolescente resolvam libertar, à revelia, crianças criadas em cativeiro, ou seja, que cumprem medidas socioeducativas em unidades de recuperação? Ou, pior ainda, que membros de algum movimento de proteção aos direitos humanos promovam uma invasão a unidades prisionais para libertação dos pobres seres humanos, mantidos em condições de insalubridade e privação de seu direito de ir e vir.
Observamos portanto uma inversão de valores e, principalmente, de direitos, causada pelo afloramento dessa consciência coletiva desprovida de sensatez e que, por agir de forma leviana, pode culminar na repressão total por parte do Estado, como forma de garantir a ordem pública e o respeito à hierarquia de direitos. Afinal, eu tenho o direito de ir e vir, mas isso não é suficiente para que eu possa entrar na sua casa a qualquer hora, ir no seu banheiro e colocar o seu chuveiro na posição verão, enquanto você toma banho, apenas por que estou amparado pela motivação moral de economizar energia para preservar o meio ambiente. Este é o ponto onde o politicamente correto se torna complexo e pode confundir o que é o certo a se fazer.
Se continuarmos assistindo passivamente essa escalada de movimentos politicamente corretos, em todos os campos do relacionamento social, sem o correto discernimento do certo e do errado (sensatez), corremos o sério risco de mergulharmos em uma de duas situações (ou as duas, em sequência). A primeira seria vivermos uma temporada de episódios de cunho anárquico, em que o respeito ao público e privado seria completamente deixado de lado, em prol de uma causa maior. Já estamos vivenciando isso, com as constantes depredações a ônibus, agências bancárias, lojas, sedes do legislativo e do executivo, entre outros, cujo custo cai nos nossos bolsos e sai mais caro ainda quando estendemos os prejuízos a outras dimensões, pois, mais grave ainda, é o risco ao legado de conhecimento científico e cultural do nosso país. A segunda situação que poderemos vivenciar seria a de uma repressão generalizada e indiscriminada do Estado a toda e qualquer forma de manifestação, individual ou coletiva. Aí sim, mergulharíamos em um período de reais privações de liberdade e nosso país, ícone atual do progressismo e da expansividade, seria mais uma vez afligido pelos fantasmas extremistas da opressão policial e do terrorismo revolucionário, que desviam os esforços públicos do crescimento para a estabilização.
Portanto, se quisermos continuar vivendo em um clima de liberdade de pensamento e expressão, temos que tomar cuidado com a violação dos limites da nossa liberdade de ação. Além de pensar e expressar nossa indignação, é preciso agir? Sim! Mas da forma correta, jogando as regras do jogo. Caso contrário, teremos que viver o mundo sonhado por Proudhon (considerado o pai do anarquismo) e, futuramente, nos contentar com as privações de liberdade imaginadas por George Orwell e Aldous Huxley em seus livros 1984 e Admirável Mundo Novo. Todos queremos um final feliz para essa história, mas para isso não podemos ser somente espectadores, temos todos que participar ativamente, nos limites do razoável, para podermos desfrutar de um amanhã melhor. Pois como disse Shakespeare, “All’s well that ends well” (“Tudo está bem quando termina bem”).